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Entrevista com um dos criadores de Pier Solar, Tulio.

fevereiro 2, 2025 | by Luiz Nai

titanpiersolar
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Entrevista realizada em 16 de Setembro de 2020.

Já que gostamos tanto de falar sobre novos games para plataformas retrôs, nada mais justo do que convidar um dos brasileiros mais importantes dessa cena. Convidamos Tulio Gonçalves, um dos criadores de Pier Solar para conversar conosco.

Luiz Nai: Tulio Primeiramente é uma honra ter essa entrevista com você, nós adoramos programar para plataformas retrô, e eu acredito que você foi um dos pioneiros que mostraram que esse tipo de sonho é possível.

Podemos começar falando um pouco do seu início de carreira? Quando você decidiu que queria fazer jogos e como foi parar na WM? Qual era o seu papel na equipe?

Tulio: Voltemos a 1995… naquele ano eu estava ingressando na escola de processamento de dados, e ao mesmo tempo foi a época em que comecei a ser exposto a computadores e linguagens de programação. Um amigo tinha um PC 486 DX2, 66MHz, com 3D Studio R4, eu ia muito na casa dele, tínhamos a mesma paixão: vídeo games, e mexíamos muito no computador, descobrindo as coisas que podíamos fazer com ele. Nessa época eu tinha o Mega Drive e o Sega CD, e eu me lembro, numa tarde voltando pra casa, conversando com esse amigo que eu iria aprender a programar para fazer um jogo de Sega CD. E especulava o como seria interessante quando gráficos 3D como os do 3D Studio fossem usados para jogos. Mal eu sabia que a era PlayStation/Saturn estava a caminho e que isso se tornaria a norma dos jogos. 

Pois bem, o tempo passou, eu aprendi a programar e comecei a trabalhar como desenvolvedor de aplicações corporativas, e foi só em 2004, devido a minha intensa interação com a comunidade de emulação no site Eidolon’s Inn que eu tive a oportunidade de me envolver com desenvolvimento de jogos. Basicamente um dia postaram uma ideia de fazer um jogo com membros do fórum como personagens. Essa ideia foi proposta mas não chegou muito longe… e o fórum ficou fechado alguns meses por problemas com spam-bots. Daí migraram o site inteiro para Wiki e um dos líderes do site queria alguma atividade para mobilizar os membros. Foi aí que eu postei a mensagem chamando membros para compor a equipe que faria o jogo do fórum (Tavern RPG) e que mais tarde se tornaria Pier Solar.

No princípio era um junta-junta dos conhecidos do fórum, e aos poucos o desenvolvimento foi tomando forma e algumas pessoas começaram a se destacar. O primeiro foi o Metalix que seria programador, e junto dele veio o Fonzie. Acabou que o Metalix saiu e o Fonzie assumiu o papel de programador. Minha responsabilidade na época era de escrever a estória, mas rapidamente fui acumulando mais tarefas. Comecei a programar as ferramentas do jogo, tal como editor de mapas, editor de inimigos, editor de magias, editor de animações, etc. enquanto isso o Fonzie programava a engine do Mega Drive (que a gente chamava de Dreamcatcher). Muita gente veio e muita gente partiu. No final ficamos com uma equipe principal de 8 pessoas que se dedicaram seriamente a esse jogo. Eu acabei tomando um papel de coordenador de todas as pessoas e assim assumi a liderança do projeto. Acabei também programando o script do jogo (que é uma linguagem de programação que nós criamos para o Dreamcatcher), compondo músicas, escrevendo diálogos, até algumas alterações de pixel art. Acho que no final, fiz de tudo um pouco.

Luiz Nai: O jogo Pier Solar foi um sucesso incrível, talvez o maior Indiegame voltado para consoles retrô já feito. Você poderia nos falar um pouco do começo desse projeto? Gostaríamos de saber sobre as dificuldades, inspirações, receios e principalmente, o dia a dia com a equipe. Como foi esse período?

Tulio: Bom, começar não foi fácil. Tentamos de todas as maneiras contactar a SEGA. Escrevemos e-mails, cartas, e até ligamos para a Sega do Japão. Com muito custo conseguimos uma resposta: “A SEGA não dá mais suporte ao Mega Drive, e portanto não concedemos mais licenças. Agradecemos por terem contactado os canais oficiais, boa sorte no seu projeto“. Nós entendemos isso como uma mensagem que dizia “não vamos te apoiar mas também não vamos te atrapalhar. Faça o que quiser desde que não use nossa marca.” De certa forma isso foi positivo, mas por outro lado, sem o suporte da SEGA, trabalhar com um hardware como o Sega CD ficava bem difícil. Muitos emuladores funcionam maravilhosamente, porém eles não são precisos justamente para que tenham a velocidade necessária para rodar nos PCs da época. E testar desenvolvimento de jogo em emulador é dar um tiro no pé, porque você vai ficar dependente das falhas do emulador para que algumas coisas funcionem. Foi exatamente isso que passamos… quando fomos testar o jogo no Sega CD tomamos uma mensagem maluca como “Master and Slave CPU out of sync”, e estava ficando realmente complicado de localizar problemas sem um kit de desenvolvimento, assim decidimos migrar pra cartucho pois era uma área muito mais explorada e conhecida, e com menos variáveis para dar problemas. Mas de uma forma ou de outra, ainda conseguimos a façanha tecnológica de conseguir usar o Sega CD a partir do cartucho assim conseguimos o melhor dos dois mundos: A velocidade de carregamento dos cartuchos e a qualidade do som do Sega CD. 

Cartucho do Pier Solar para Mega Drive/Sega Genesis.

Nesse projeto, como eu disse anteriormente, muita gente entrou, muita gente saiu, acho que a parte mais difícil foi realmente achar gente comprometida a dedicar seu tempo livre, fins de semana, feriados, etc ao projeto. Uma vez que estabelecemos isso, o outro grande obstáculo foi nossa própria ambição de criar um jogo de proporções comerciais. Nós tínhamos esse objetivo bem definido “fazer o melhor jogo de todos os tempos”, portanto todas as dificuldades se transformavam em motivação de fazer o jogo melhor a cada passo, superando todos os desafios.  Quando chegamos na reta final de fabricação e lançamento foi um grande alívio e muita comemoração, é extremamente gratificante ver um projeto a que nos dedicamos tanto tomar forma e chegar a todos os cantos do mundo.

Luiz Nai: Quais as dificuldades você encontrou ao gerenciar um projeto como esse que envolvia talentos de diferentes países? Hoje temos diversas equipes formadas por pessoas de várias nacionalidades, trabalhando nos mesmos games. Você vê isso com bons olhos? O que você recomendaria a quem está começando? Esse intercâmbio é interessante para os iniciantes?

Tulio: Acho que posso te dizer que tivemos um certo pioneirismo no que fizemos, com a equipe espalhada em diversos países. Eu digo sem hesitação que é possível sim que um projeto seja desenvolvido nesses moldes, com a equipe totalmente remota e sem um local centralizado, mas isso requer um certo perfil de profissional para dar certo, afinal é muito fácil se distrair e empurrar as coisas pra depois quando não há um ambiente onde alguém supervisiona suas atividades. 

Em termos de cultura, felizmente foi bem fácil alinhar, não tivemos problemas com choques culturais, todo muito foi sempre muito focado em suas atividades, e com bom conhecimento de inglês, que é normalmente a língua unificadora quando há diversos idiomas nativos. 

Quanto a recomendar, eu acho que varia de pessoa pra pessoa. Eu diria que há um grande valor em trabalhar num ambiente tradicional antes de se aventurar em um projeto distribuído remotamente. Trabalho em ambiente tradicional ajuda muito no desenvolvimento de disciplina que é extremamente importante para projetos distribuídos remotamente. Mas novamente, varia de pessoa pra pessoa. Hoje em dia eu prefiro uma equipe toda junta num lugar só, mas ainda continuo trabalhando com meu pessoal remoto.

Luiz Nai: Ainda sobre o Pier Solar, a recepção do game foi ótima quando saiu para o Mega Drive. Vocês já pensavam em levá-lo para plataformas mais novas ou isso foi uma decisão que veio após o sucesso da versão 16-bit?

Tulio: Eu sempre quis. No início eu queria trazer o Pier Solar para o Xbox 360 porque eles tinham o XNA framework, que dava acesso a um console contemporâneo pra desenvolvedores como nós. Além disso havia sim uma pressão do público que queria jogar mas não tinha como jogar o jogo em um Mega Drive. Lógico que os desafios são grandes, e o projeto acabou ficando pra época em que aconteceu o Kickstarter.

Pier Solar no Wii U.

Luiz Nai: Sobre a sua decisão de sair da WM, o que te motivou a dar este passo?

Tulio: Fazer um jogo para plataforma moderna foi uma coisa muito gratificante, ver nossa marca aparecendo em sites populares, aparecendo em vídeos na E3, e ser convidado para exposições e conferências pela Nintendo. Além disso a diferença de alcance ao público e geração de receita é astronomicamente superior. Minha tendência é que todos os jogos futuros da WM saíssem em plataformas modernas e a receita sustentasse a criação dos jogos para cartuchos. Mas como sócio da empresa, o Fonzie não concordava com essa premissa.

Além disso, por motivos que só ele entende, o Fonzie completamente perdeu sua confiança em mim, ao ponto de ficar paranoico e achar que tudo que eu fazia era com objetivo de prejudicá-lo. A esse ponto não havia mais como manter um relacionamento, e eu decidi para meu próprio bem que seria melhor parar de trabalhar com ele. Assim, eu fiquei até confirmar a fabricação da versão de Dreamcast do Pier Solar HD, e anunciei minha saída. Achei melhor sair do que brigar pra que ele saísse pelo benefício da empresa, afinal tinha ainda o Projeto Y, e Projeto N em andamento, dos quais ele me alienou completamente. Eu não tinha nenhum código fonte, nenhuma arte, nada, estava tudo nas mãos dele. Se eu pedisse que ele saísse, certamente ele iria desaparecer com todo o progresso do jogo, assim, não sendo culpa das pessoas que compraram nossos jogos, resolvi sair pois assim eu acredito que esses projetos serão concluídos, e eu volto a dormir em paz. 

Tulio mostrando o Pier Solar do Dreamcast.

Luiz Nai: Como nasceu a 2Dream?

Tulio: Fazer jogos é algo que me traz muita satisfação, e pelo qual eu tenho muita paixão, assim, se eu fiz a WaterMelon uma vez, eu tenho confiança que posso fazer a 2Dream do zero. A maioria das pessoas que colaboraram com projetos da WM me apoiaram na decisão e ofereceram suporte total e completo para ajudar em tudo que eu precisasse, e se dedicar à 2Dream quando o momento certo chegasse. Graças ao bom relacionamento que eu formei com as plataformas (Sony, Microsoft, Nintendo, etc.) a 2Dream já começou licenciadas desde o primeiro dia, para fazer jogos para todos os consoles modernos. A grande diferença é que para a 2Dream depois de sair da WM, eu passei um ano fazendo o plano de negócios e preparando a empresa para receber capital externo (Venture capital ou Angel investor). Nesse processo nós acabamos terminando o Ghost Blade HD e lançando o jogo, o que tornou a empresa sustentável. 

Luiz Nai: Vimos que a 2Dream está envolvida no jogo Saber Rider (financiado no KIckstarter). Qual foi a participação de vocês neste projeto?

Tulio: Uma das coisas que fizemos logo ao formar a 2Dream foi passar 8 meses desenvolvendo nossa engine (Dreamer) que é a única engine comercial que suporta consoles modernos, PC e Dreamcast. Esse atrativo do Dreamcast fez como que o Cris Strauss da equipe Saber Rider, nos contactasse para ver se poderiam licenciar nossa engine, pois o projeto deles era pra Nintendo 3DS e Dreamcast. Assim nós formamos uma parceria e fornecemos a engine para a equipe de desenvolvimento do jogo. Acontece que ano passado eles resolveram nos contratar para fazer o desenvolvimento do jogo em si, assim nosso papel aumentou. Essa transição causou alguns atrasos no projeto e estamos trabalhando firme dentro dos recursos disponíveis para aprontar o jogo o mais rápido possível.

Screenshot de Saber Rider.

Luiz Nai: Você está envolvido em outros projetos? Gostaria de falar um pouco deles?

Tulio: Primeiramente tem o Ghost Blade HD que foi lançado para PS4, Xbox One, Wii U e PC, estamos agora considerando a versão para PS Vita. Formamos uma parceria com a eastasiasoft e com a Limited Run Games para fabricação de cópias físicas do jogo na Ásia, Europa e América, e futuramente todos os nossos jogos terão acesso a cópias físicas através dessas empresas. Além disso, a 2Dream tem seus jogos próprios, embora nossos recursos ficaram mais dedicados a atender os jogos publicados, estamos trabalhando neles firmemente. Um deles é o Xenocider que foi apresentado recentemente e estamos fazendo crowdfunding pelo site do jogo, outro é o Ameba que é um jogo estilo “novela visual” no qual estamos planejando lançar para além do Dreamcast e consoles contemporâneos, uma versão de Saturn. 😉 Quem sabe o pessoal de um certo estúdio “Titan” resolva juntar as forças? 😉

Capa europeia de Xenocider para Dreamcast.

Luiz Nai: Sobre trabalhar em um estúdio estabilizado como a 2Dream, o que um profissional brasileiro precisa ter para, eventualmente se candidatar a uma vaga? Quero dizer, quais as maiores necessidades que você vê no mercado atualmente? Quais seriam os profissionais mais difíceis de encontrar?

Tulio: Artistas, sempre artistas. É verdade que os programadores para sistemas como o Dreamcast, Saturn, etc, são extremamente raros, mas programadores podem ser treinados, mas arte depende muito de talento. Especialmente pixel art. Eu vejo muita coisa boa, não tenha dúvidas, mas achar aquela pessoa que encaixa perfeitamente é uma tarefa monstruosa. Isso foi uma coisa que eu certamente aprendi com o Fonzie… diferenciar o bom, do ótimo, do excelente. E estamos sempre em busca do excelente, seja para arte gráfica, música, programação, conteúdo, estória… sempre queremos oferecer o melhor ao nosso o público.

Luiz Nai: Tulio, vamos utilizar essa última pergunta para agradecer-lhe pela entrevista, atenção e tempo que nos dedicou. Além é claro, registrar aqui que somos fãs do seu trabalho há tempos, parabéns pelo sucesso.

E aproveitar o ensejo, que tal deixarmos uma mensagem para quem está começando agora? Qual é o conselho que você gostaria de deixar para a galera que nos lê?

Tulio: Busque seus sonhos e tenha perseverança e disciplina. Obstáculos sempre aparecerão, mas eles são, mais do que tudo, testes da sua determinação, é o que separa competidores de vencedores. Se você acredita no que faz, acredita no seu potencial e nas pessoas que o apoiam, não há nada que irá lhe deter. Continue tendo disciplina, acreditando, buscando, nunca desista, você vai chegar lá.  

Meu muitíssimo obrigado pela oportunidade dessa entrevista, precisando de algo pode sempre chamar. 

Grande abraço,

Tulio.

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